terça-feira, 13 de novembro de 2012

Bem diferente


O idoso escolhe sua mesa favorita, no canto do salão, e pede o vinho de sempre, que hoje “tem, mas acabou”.  Conversa com desenvoltura com dois garçons denotando intimidade de habitué.

Com uma folha de papel, faz flor e entrega a uma das quatro jovens, colegas de trabalho, que almoçam na mesa ao lado.  Elas agradecem a gentileza.  Ele explica que é uma “técnica japonesa chamada origami” e que é capaz de fazer girafa, coelho e outros bichos.

Após curto intervalo, ele puxa assunto, estilo veterano galanteador de segunda .
- Vocês trabalham nas imediações?    (caramba, ele usou a palavra “imediações”!)
- Sim, numa empresa do outro lado da rua.
- Empresa de quê?
- Empresa de comunicação.
- Eu tenho um amigo que tem um escritório naquele prédio.  Eu já tô velho, aposentado...

E por aí vai. As moças respondendo delicada, mas laconicamente, às investidas. Não queriam ser grosseiras, mas estão interessadas em conversar entre elas.

Ele então fala dos cinco filhos e seis netos e mostra fotos. Elas elogiam: “Família bonita”.

Com o passar do tempo, e o nítido desinteresse das moças educadas em esticar a conversa, ele capitula e pede a conta, quase ao mesmo tempo em que eu termino o meu filé.

Eu também almoço sozinho. A solidão pode ser ruim. A velhice é pior ainda.

Como diz um amigo sexagenário: “envelhecer é bem diferente de viver”. 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Galeria Nacional

Na sala 41, uma das minhas favoritas - como se fosse possível tê-las em um lugar como a National Gallery - a segurança ruiva permanece alheia a todos e às obras de arte que, para ela, são agora mera paisagem revista ad nauseum. A única coisa pendurada na parede que lhe interessa é a placa que sinaliza "way out". Tudo que deseja depois de mais um dia arrastado em longas horas tediosas são duas pints em um pub, antes de encarar o tube pra casa.

domingo, 16 de setembro de 2012

Cada mergulho, um flash



Cena carioca: em quiosque da praia de Copacabana, um grupo batuca pagode tosco, desses para arrumar tips dos gringos, e um gay, vestindo sunga vermelha com estrelas e regata de oncinha, samba frenético, sentindo-se Luma na Avenida.  Admiro quem consegue se divertir com tão pouco.

domingo, 5 de agosto de 2012

Ela está ali


São 1h37 da madrugada de domingo e ela, sozinha, fuma e toma lentamente um chopp que esquenta rapidamente num restaurante da orla de Copacabana nessa noite morna sem lua. Tem uns cinquenta e muitos anos e está arrumada, maquiada com algum excesso, brincos grandes, pulseiras douradas, colar de bijoux,  vestido preto, cabelos tingidos de louro pra disfarçar os fios brancos que denunciam a idade. Em vão. Pescoço, pés de galinhas e mãos delatam.  

Faz tempo – uns três anos, pelo menos – que não sabe o que é um homem. E ela queria muito chupar um pau esta noite. E ter mãos firmes que a tocassem com vontade, que lhe trouxessem de volta orgasmos distantes, mas não esquecidos. Não tem sido fácil. Em suas incursões pelo vazio das noites, ela, vez ou outra, conversa com algum solitário. Mas todos têm sido invariavelmente desinteressantes. Grosseiros, quase rudes, barrigudos, calvos, que fazem galanteios diretos demais,  baratos como rosas murchas de vendedores ambulantes. Gente que desanda a falar mal da ex-mulher que lhe tira uma fortuna de pensão e de filhos problemáticos.

Ela mesma sobrevive com a pensão – não uma fortuna – que recebe do ex-marido que lhe deixou por outra, mais jovem, uma divorciada com duas crianças, e com um salário modesto de funcionária pública de quinto escalão da prefeitura. Aluga um pequeno apartamento ali mesmo em Copa em um prédio antigo, feio e mal cuidado. Poderia estar roubando, matando, mas está ali. E esta já é uma piada velha dos vendedores de balas dentro dos ônibus que ela pega diariamente até o Centro.

Ela está ali. Recusa-se a aposentar o desejo.  Nada de acomodar-se diante da televisão, de vestir sandálias baixas da linha Comfort, e cuidar de netos. Até por que sequer teve filhos com o ex-marido.  Compra roupas que emulam elegância e qualidade nas lojas populares escondidas nas galerias do bairro. Não têm bom caimento, mas disfarçam razoavelmente as imperfeições que a idade e a gravidade impõem ao corpo. Ela luta contra, fazendo ginástica numa academia modesta perto de casa.

Ela está ali, olhando o movimento na calçada, a diversificada fauna noturna, àquela altura com interesse pouco maior do que a indiferença  à televisão sem som suspensa no restaurante.  Dado o avançado da hora, pressente sem dificuldade que seu jejum não se encerrará hoje.

Tudo bem, está habituada ao zero a zero.  No próximo fim de semana, estará de volta, com o mesmo fiapo de esperança. Ela só quer, como quase todo mundo, encontrar alguém legal pra ficar. Um coroa bacana que a leve para jantar, para viajar, ao teatro. Um homem gentil.  Ainda haverá algum? Ela está ali. Seu mérito maior é tentar.


sábado, 30 de junho de 2012

Onde era céu

foto: Leandro Wirz



Eu trabalho em um prédio modernoso de gosto arquitetônico pra lá de duvidoso. Desses com vidros espelhados.  Volta e meia, ouvimos um baque surdo contra a inquebrantável vidraça. E é menos um pássaro no mundo.

Na condição quase marginal de fumante, eu estava lá embaixo  fazendo fumaça e olhando o movimento da rua quando um passarinho se chocou contra o prédio. Caiu bem perto de mim.

Caído meio de lado, permaneceu por instantes com a cabeça enfiada no chão e a asa esquerda aberta.  Como se sentisse aquela dor aguda de quem leva um chute no saco. (Não sei qual seria exatamente o equivalente feminino para a dor de um chute no saco. Então, mulheres, perdoem a minha ignorância e imaginem a dor mais intensa que podem sentir). Saca aquela cena manjada de jogador de futebol valorizando a falta que levou? Rosto chafurdado na grama, expressão de choro, mão no local onde levou a pancada e o outro braço erguido chamando atendimento médico e maca? Pois é. O passarinho era bom nisso. Mas não estava encenando.

Aos poucos, foi recolhendo a asa, tirando a cabeça do chão e pondo-se em pé. Ou em patas. Evacuou. Perdoem a escatologia, mas foi o susto.  Então, dirigiu os olhos para o prédio gigante diante de si e foi levantando gradualmente o pescoço até o limite, tentando entender em seu minúsculo cérebro que porra era aquela que parecia céu azul, mas era um aríete.

E ficou ali alguns minutos, atordoado. Longos minutos.

Até que um homem se aproximou dele, na intenção de ajudá-lo. Assustou-se, porque já sabe que humanos  - e agora, também prédios envidraçados – são uma ameaça. Felizmente, abriu asas e saiu voando ligeiro na direção oposta ao edifício assassino.

Na hora do almoço, em trágica coincidência, me deparei com outro passarinho tombado na calçada, em frente ao colosso impassível. Este não teve a mesma sorte.

Fiquei pensando, não em leões, mas em quantos pássaros matamos por dia. Pássaros enganados por ilusões de céu com seus voos violentamente interrompidos. E como será à noite, quando os vidros se tornam espelho negro e opaco? Onde era céu, súbito é muro.





ps.: Este texto é dedicado à querida Selma Pereira que, ao me ouvir contar esta história, pediu que eu a escrevesse.

E o vento...




Alguém reproduziu no Facebook este gráfico que ranqueia os dez livros mais lidos de todos os tempos. Não me dei ao trabalho de checar a fonte primária ou a seriedade da apuração estatística. Se ela não for verdadeira, é, ao menos, verossímil.

Em primeiro lugar, disparado, está a Bíblia.  Sagrada para católicos e evangélicos. Em segundo, socorro, está o  livro do Mao Tsé-Tung. Afinal, foi – ainda é? - leitura obrigatória para bilhões de chineses.  Depois, vêm, pela ordem: Harry Potter; O Senhor dos Anéis; O Alquimista, de Paulo Coelho;  O Código Da Vinci; a saga Crepúsculo; E o Vento Levou...; um tal de Think and Grow Rich (o povo todo quer enricar, né?); e O Diário de Anne Frank, que provavelmente preferiria não ter passado pelo sofrimento que a fez escrever aquelas páginas.

Salvo honrosa exceção, fica evidente que a quantidade de exemplares vendidos/lidos não guarda nenhuma relação com a qualidade literária das obras. De modo geral, eu achei a lista compreensível, porém lamentável. E o vento poderia levá-la embora...  

sexta-feira, 2 de março de 2012

Big Cucaracha

Chego de viagem e a geladeira é uma instalação pós-moderna. Vazia. Sem nada para comer e a fome gritando, vou ao lugar mais perto de casa. Não que eu ame muito tudo isso. Pergunto se o tal do Big Tasty é maior do que o Big Mac. Ela diz que é “beeeem maior”. Este é meu único critério para escolher o sanduíche, com fritas e refri grande. Era uma noite quente no verão carioca, pós-carnaval, com as ruas ainda sujas e fedendo a mijo dos foliões mal-educados dos blocos. O ar-condicionado da birosca americana não funcionava. Pronto. Visualizou o inferno? Calma, ainda não chegamos lá. O sanduíche lembra remotamente o da foto no cartaz. E o molho é horroroso. Quantas camadas faltam, Dante? Enquanto como empurrando o bolo alimentar para dentro com fartos goles na Coca, uma super-hiper-ultra-mega-giga barata cascuda, daquelas voadoras, desfila lenta e garbosamente pela parede. Minha proposta de jantar era trash, mas nem tanto.


Chamo o faxineiro para matá-la. O jovem aquiesce com a cabeça, mas para minha surpresa, dirige-se ao depósito e se esconde lá dentro, mantendo a porta entreaberta enquanto observa a barata dona da parede.

Chamo o segurança, digo que pedi ao faxineiro para matá-la, mas zero atitude. O segurança vai falar com o gerente. O segurança volta e diz que o gerente disse que era para o faxineiro matar a barata. Faz sentido. Barata não é bandido, então é da alçada do faxineiro. É uma questão de governança corporativa. O segurança diz que o faxineiro tem medo de barata. Super qualificado para o cargo.

O faxineiro permanece escondido. Chega uma, e depois outra, funcionária para o trabalho. A ambas ele pede ajuda. As duas negam, mas sem nenhuma afetação ou temor excessivo em relação à visitante ilustre. Eu continuo comendo. Corajoso.

O gerente sai detrás do balcão, com vassoura em punho. Atinge a fera voadora e termina o serviço com um segundo golpe sobre a cambaleante besta assassina. O faxineiro, aliviado, sai então de seu bunker, varre o cadáver e sorri amarelo. Em tom desbotado, diferente do M do letreiro luminoso.





23/02/2012 - Avenida Nossa Senhora de Copacabana.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Cena contemporânea

Restaurante do shopping, desses em que se escolhem ingredientes e molho para montar a salada acompanhada de quiche. Executiva loura balzaquiana bonita de bolsa Louis Vuitton mexe ansiosamente em seu smartphone enquanto aguarda a comida. O prato chega, o telefone toca, ela atende. É uma amiga. Ela ouve enquanto mastiga e fala. Quem me conhece sabe o quanto sou curioso. Presto atenção na conversa, naquilo que posso ouvir por conta da distância entre nossas mesas. São palavras e frases picotadas que consigo pegar. Ela menciona o Facebook. Do carinha – namorado, ficante, pretendente, sei lá qual o status. Diz que isso – embora não dê para eu saber o que é “isso” exatamente - é demais para ela, demais para qualquer mulher suportar. Pelo jeito, viu ou leu algo que não gostou. Conversa longamente com a amiga. Pede opinião, conselho. Desabafa. Termina a conversa. Termina a comida. Terminará a relação?