No elevador, a
vizinha estava filosófica: "Envelhecer é uma vitória e uma tristeza. Uma
vitória, porque a gente chegou lá, sobreviveu; e uma tristeza porque vem muita
coisa ruim também". Tá bom pra domingo de manhã, né?
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
Sem misericórdia
Caminho cedo com o
cachorro na manhã nublada. A bonita gari grávida, com bem cuidadas tranças
afro, fala ao celular com entonação cantada: “bom dia, com muita alegria!”. Em
seguida, encara as centenas de folhas de amendoeiras que o vento, com natural
ausência de misericórdia, espalhou pela praça. E diz, rindo, “eu vou chorar o
dia inteiro”.
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terça-feira, 24 de dezembro de 2013
Solidão atualizada
Almocei na companhia do meu smartphone, que não me
acompanhou no chopp. Joguei paciência (que em inglês, chama-se, mui apropriadamente, solitaire), fiz um selfie para postar como estava me
divertindo na rede social, onde li notícias suas, tão melhores, de algum lugar
distante.
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terça-feira, 29 de outubro de 2013
Namoro novo
Dez e quarenta e cinco de uma terça comum. Ele a deixa no
trabalho, provavelmente atrasada. Dentro do carro, beijam-se longamente. Ela
desce e caminha em direção à entrada do prédio. Vira-se, talvez ele a tenha
chamado. Volta até o carro e, na ponta dos pés, estica o corpo pra dentro, pela
janela aberta do carona. Outra vez,
beijam-se demoradamente.
Ela então retoma o prumo e o rumo à portaria, levemente
corada, sorridente e olhando para trás. Ele permanece parado até que ela suma
completamente de seu campo de visão. Quem sabe torcendo para que ela decida
jogar tudo para o alto e voltar para o carro porque o desejo não pode esperar.
Felizes são os namoros novos.
Fosse namoro antigo, ela não voltaria para beijá-lo uma vez
mais. Fosse namoro antigo, o beijo de despedida no carro seria mero selinho.
Fosse namoro antigo, ele não a levaria ao trabalho. Fosse namoro antigo, eles
não perderiam a hora do serviço. Fosse namoro antigo, seria hora de acabar.
quinta-feira, 1 de agosto de 2013
Bons hábitos
Cioso de sua saúde, a cada hora de trabalho, desgrudava os olhos da tela do computador, levantava da cadeira, alongava o corpo, esticava as pernas e descia para fumar.
terça-feira, 30 de julho de 2013
O silêncio de cada um
Mal se sentam à mesa ao lado e os dois jovens casais pedem à
garçonete que fotografe seus sorrisos congelados em momento de euforia
fabricada para consumo externo. Click
feito, foto postada nas redes sociais imediatamente. Os quatro então se voltam para seus
smartphones por vários minutos. O silêncio é interrompido quando uma das
mulheres comenta que já tinha cinco curtidas na foto. E voltam a mergulhar no
cristal líquido das telas. A interação é essa, virtual.
Não difere muito da nossa, real. Permanecemos calados
observando o movimento ao redor e cortando o silêncio com pontuais comentários
ácidos.
Ao mirar o espelho, eu faria um sobre a melancolia dos
casais antigos.
Mas preferi calar.
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segunda-feira, 29 de julho de 2013
Homenagem
No dia que seria aniversário do finado marido, a viúva transou febrilmente com o atual.
Ciente da simbologia da data, ele não sentia o orgulho dos vencedores. Incomodava-se por ela lembrar-se do falecido, da forma que fosse, em qualquer ocasião.
Se era pra ser uma espécie de homenagem, era do tipo que não agradava plenamente a ninguém. Nem à própria viúva, que preferia mesmo um ménage com os dois, o morto e o vivo, se ainda o fosse.
No passado, sonhara secretamente com isso, mas sabia que se lhes houvesse proposto o sexo a três, hoje haveria um viúvo.
Ciente da simbologia da data, ele não sentia o orgulho dos vencedores. Incomodava-se por ela lembrar-se do falecido, da forma que fosse, em qualquer ocasião.
Se era pra ser uma espécie de homenagem, era do tipo que não agradava plenamente a ninguém. Nem à própria viúva, que preferia mesmo um ménage com os dois, o morto e o vivo, se ainda o fosse.
No passado, sonhara secretamente com isso, mas sabia que se lhes houvesse proposto o sexo a três, hoje haveria um viúvo.
terça-feira, 11 de junho de 2013
Marmanjos melados
Eu estava na porta do clube esperando chegar o táxi que
chamei. Outro carro vem. Cinco marmanjos tentam convencer o taxista a
levar os cinco em uma corrida só, espremidos em um sedã pequeno.
Oferecem pagar a mais do que o taxímetro marcar. Oferecem o
dobro. Oferecem pagar a multa se, por ventura, ela vier. O taxista permanece
irredutível ante as propostas turbinadas pelo – neste caso, muito – vil
metal. Educadamente, explica que
transportar cinco passageiros é ilegal e sobrecarrega o carro.
O taxista aciona pelo rádio outro carro da cooperativa,
provavelmente esperançoso de que, com dois carros à disposição, o grupo
aceitasse se dividir.
Os marmanjos, todos bem acima dos quarenta anos, insistem. Um dos babacas senta-se no meio-fio, de birra
infantilóide, e diz ao taxista que ou leva os cinco ou não leva nenhum.
Chega o outro táxi, igualmente um pequeno sedã, que,
lamentavelmente aceita levar os cinco espremidos. O birrento faz cara de triunfo
sobre o taxista que havia se recusado a transportá-los.
Eu, que ainda aguardava meu táxi, fiz questão de
cumprimentar o primeiro taxista dizendo que ele agira corretamente.
Mas não consegui entender a razão de cinco marmanjos suados,
saindo da pelada de domingo no clube, fazerem questão de andarem grudados,
melados e apertados, se roçando no carro.
segunda-feira, 10 de junho de 2013
Aéreas termais
No voo entre São Paulo e Goiânia, minha poltrona está
cercada por uma dúzia de senhoras frenéticas com o passeio que farão à Caldas Novas
e suas piscinas de águas termais. Eu
tentando ler poesia, os originais de um livro que uma amiga me enviara, pedindo
minha modesta opinião, despida de
qualquer autoridade de expert.
A senhora ao meu lado estica o olhar sobre o que estou
lendo. Simpática, tenta puxar conversa. Correspondo dentro do estreito
limite da boa educação apenas. Ela pergunta
se fui eu que escrevi, se vai virar livro, se sou o editor e comenta que os poemas
são “complexos”. Assumi como elogio, embora tenha me parecido que ela não entendeu
bem o que havia lido de esguelha.
As senhoras da fila da frente matraqueiam sem parar. Falam
mal da nora de uma delas, esporte favorito de muitas sogras por aí. A senhora diz que não entende como o filho foi se casar com aquela moça porque ela isso, ela aquilo. Até que uma vaticina: “É
o sexo. Ela deve ser boa nisso. Mulher tem que ser safada”.
Esqueço a poesia, contenho o riso e louvo a sabedoria da
maturidade.
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quarta-feira, 5 de junho de 2013
Fofoca de vizinho
Segredo é algo que a gente conta para uma pessoa de cada vez. E fofoca talvez seja o segredo que saiu do armário e se descompromissou com a verdade.
Eu não conheço meus vizinhos. Nem quero. Com vizinhos, nunca gostei de intimidade, nem de confusão.
Mas por essas vulgaridades das construções modernas, quando estou no banheiro escuto – mesmo sem querer - a conversa de outro apartamento. Não sei se ao lado, embaixo ou em cima. Mas com alguma frequência, ouço um homem falar, quase sempre resmungando ou reclamando. Pela voz, deve ter algo entre 55 e 60 anos.
Noite passada, meu vizinho rabugento se excedeu. Ele disse, presumo que para sua mulher:
“Você acha que eu vou comer tudo isso?! Não sou que nem você, você devia fazer dieta, está imensa de tanta porcaria que come.”
Concluí que a principal porcaria na vida da mulher dele é o seu marido, meu vizinho.
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